A manhã acordou serena e doce. Por entre a penumbra, os raios do sol começaram, deliciosamente, a libertar-se. De repente, o astro rei soltou-se do horizonte e a terra encheu-se de alegria.
O primeiro dia de Outono chegou, após um fim de semana tormentoso.
Ao fundo, as ilhas Terceira e São Jorge descobriam-se da neblina.
-Será que a viagem até São Miguel se vai realizar? - interroguei-me, receoso. -Com uma manhã destas, não há mar que atormente, pese embora a previsão do tempo. Sim, porque nem todos os meteorologistas são o Pedro Mata, que amadureceu com a maresia, as nuvens e o vento das ilhas.
Ao sair da porta da adega, o velho mercedes aguardava os últimos sacos de viagem, gemendo, silenciosamente, com o peso das uvas e dos frascos de doce, das garrafas de angelica e de aguardente e com o garrafão de vinho que o José Feijoco, amigo dos tempos de menino, me oferecera à despedida.
-Leva contigo p,ra São Miguel e faz dele o que quiseres.
Como poderia eu rejeitar o melhor vinho de cheiro do Pico, produzido com uvas da Engrade e da Manhenha? Não é ele um apreciado parceiro de todas as celebrações, néctar precioso que só os mais preconceituosos recusam?
À hora marcada, lá surgiu o Santorini. A operação no porto de São Roque foi rápida, apesar do embarque de mais de três dezenas de viaturas.
No canal Pico-São Jorge, o navio enfrentou o mar cavado de noroeste rumando aos Rosais, dando a entender que iria para a Graciosa. Mas não. Entrado na calmaria da costa, virou a bombordo e rumou às Velas, onde esteve pela última vez este ano.
-Por que não continuam estes barcos as viagens, durante o inverno? -comentava o Maciel. - Ao menos a gente ia à Terceira e vinha, quando quisesse!...
Já o barco se afastara do Porto de Velas e subi ao deck 5, quando o navio passava em frente às Manadas, onde há anos passámos alguns dias com o Onésimo e a Leonor. Excelente cicerone da ilha que Carlos Faria cantou no “Ciclo da Esmeralda”, Onésimo, este ano não esteve ali, desfrutando da imponência da “ilha Maior”. Ficou-se pela ilha do Arcanjo, sua dileta mãe.
A viagem prosseguia calma, enquanto as fajãs, pequenas e preguiçosas, viradas a Sul, cenário de três gratificantes meses passados na Ponta da Ilha, iam ficando para trás, deixando na alma uma saudade incurável.
São Jorge, exceptuando uma ou outra localidade mais alta, é constituído por Fajãs junto ao mar, onde o milho, os inhames, a fruta e o café da Fajã de São João sabem a maresia. No alto das ravinas e dos montes, o gado alimenta-se dos pastos verdejantes, abriga-se nos cedros do mato, gerando leite com que se faz um dos queijos mais afamados do mundo.
Que diria o Maestro Francisco Lacerda, se voltasse hoje ali à Ribeira Seca, vindo de Paris, e ouvisse a belíssima filarmónica de que foi regente? E os demais jorgenses, do despovoamento da sua terra, muitos deles obrigados a emigrar, após o sismo de 62 para os colonatos angolanos e, anos mais tarde, então retornados, para os vales da Califórnia, onde concretizaram os sonhos falhados em África?
Altaneira, a Ilha molda-se à chuva e aos ventos. As tortuosas ribeiras, que escorregam pelas íngremes falésias, continuam a esboroar a ilha, mas este crocodilo gigante não se amedronta com as cócegas que lhe fazem os elementos.
Da Ponta do Topo, o cenário lindíssimo envolve a montanha do Pico, a pequenez distante do Faial e da Graciosa e a formosa Terceira.
Na ilha de Jesus, vivi os meus verdes anos de que guardo tantas, tantas memórias de viagens em cruzeiros sem destino...
Neste arquipélago de sonhos, navego rumo a São Miguel, mãe adotiva de muitos anos.
Regresso temporário pois, nesta idade, a vida reparte-se por aqui e por ali, com projectos transitórios e imprevisíveis.
Voltar para Crónicas e Artigos |